quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Rivane Neuenschwander

























Entrevista da artista à  Fernando Oliva.
Gostaria de começar perguntando como você vê as trocas que se dão com o público em alguns de seus trabalhos, caso especial de “Eu Desejo o Seu Desejo”. Poderíamos dizer que elas se dão em uma via de mão dupla: de modo simbólico, intermediadas pelo processo artístico (em muitos casos no espaço da instituição, galeria ou museu), mas também de maneira efetiva? Em outras palavras, como em seu trabalho funciona a idéia de “participação”, um conceito chave para a Documenta, a 27ª Bienal e ainda uma preocupação central para o mundo da arte hoje?

Rivane Neuenschwander: Acho que a troca, no sentido de “uma coisa por outra”, se dá em alguns trabalhos específicos, como em “Ici Là-Bás Aqui Acolá”, onde compro desenhos da Torre Eiffel por R$ 1, ou “Imprópria Paisagem”, onde faço um acordo com os amigos em troca de pinturas de marinhas. São trocas a meu ver tanto simbólicas quanto efetivas, e no segundo caso também afetivas.
No caso de “Eu Desejo o Seu Desejo”, lembro-me de ler uma crítica sobre a exposição em um jornal (“Folha de S. Paulo”), em que se dizia que as pessoas trocavam seus desejos por desejos do outro, na base do 1x1, como em um jogo. Não pensei o trabalho nessa direção, e acho que uma leitura ou atitude deste tipo se deve a fatores culturais e também pessoais. Não estamos acostumados a dar ou receber nada de graça. Para mim, tanto faz deixar um desejo escrito por um outro impresso quanto pegar 50 fitinhas sem deixar nada em troca. Não há regras de procedimento de minha parte.
Curioso é que a fitinha parece invocar a troca em um nível mais profundo, pois amarrando-a no braço esperamos que nossos desejos se realizem em troca do desmanche do tecido.
Já a troca no sentido de alteração acontece na maioria dos trabalhos. Me interessa que o “outro” possa interferir no trabalho, seja modificando a sua “aparência” regularmente ou agregando a ele camadas de interpretação e significado. Digo “outro” porque pode ser tanto uma pessoa como também uma formiga ou o vento.
O tempo, invariavelmente, é protagonista constante. Procuro pensar a tão clamada “participação” em vários níveis, como por exemplo em “Andando em Círculos” ( obra feita com bacias de alumínio, água, sabão de coco e cola) ou mais recentemente em “Estórias Secundárias” ([em cartaz na galeria Tanya Bonakdar, em Nova York), onde o visitante contribui com o trabalho sem necessariamente se dar conta disto.

Neste sentido, que tipo de relações você acharia possível estabelecer entre as questões próprias da sua produção e o conceito da “estética relacional”, tal como o concebeu Nicolas Bourriaud?
Rivane: Não me atreveria a fazer relações do meu trabalho com os escritos do Bourriaud. Engraçado é que normalmente os críticos partem do movimento neoconcreto no Brasil para traçar paralelos com o que fazemos por aqui. Como se nossa investigação não tivesse muita conversa com artistas contemporâneos de outras nacionalidades. Talvez por isto a ausência, por exemplo, de uma Lygia Clark para falar de estética relacional.

Para além da relação artista-público, como você vê a troca público-público em seus trabalhos?
Rivane: Quando recebi os papéis datilografados de volta da Bienal de Veneza, referentes à obra “[...]”, fiquei muito impressionada com a generosidade do público, tanto no sentido de colaboração com o projeto quanto no de envolvimento pessoal. Fiz uma seleção de 150 “desenhos” que foram feitos pelas pessoas que passaram pela Bienal e que realmente despenderam tempo para escrever longas cartas, fazer elaborados desenhos ou deixar textos construídos sem letras. Colocando um desenho do lado do outro, vi a riqueza do diálogo público-público e de uma certa eficiência do trabalho neste sentido da comunicação.
Interessante ver o contraponto do indivíduo com o coletivo e como os desenhos se repetem de maneira inconsciente, tanto pelo tipo de mensagens quanto pelo aspecto formal, dadas as limitações técnicas do trabalho (“Estórias de um Outro Dia”, Tanya Bonakdar Gallery, 2006).
Outro trabalho que trata disso de maneira bastante evidente é “Zé Carioca e Amigos” ([que fez parte da mostra “Tropicália - A Revolution in Brazilian Culture”, no Museu de Arte Contemporânea de Chicago, em 2004), onde o público interage entre si, criando um diálogo múltiplo. Em cima da minha “ação”, uma pessoa interfere na ação de outra, seja no sentido de adição e/ou sobreposição de imagens ou textos desenhados com giz, seja no de subtração dos mesmos, pelo uso do apagador.

Você acha possível criar analogias entre a “presença do corpo (corpus)”, como nos fala Agamben (com base na figura jurídica do habeas corpus, “tenha seu corpo”) e a materialidade do corpo em sua produção? Penso nos muitos trabalhos que exigem a presença física e real do público, inclusive para que as trocas se estabeleçam.
Rivane: Honestamente não sei o que Agamben fala sobre isto e por isso não posso fazer nenhum tipo de analogia. A presença física do público é essencial para que o trabalho passe a existir, mas também tento fazer com que o trabalho seja essencial para que o público se dê conta de sua própria existência. Assim espero que o visitante tenha maior consciência do ato de andar ou de olhar, e do que isto implica em acessar “cantinhos” ou dar importância a “coisinhas”.
Não acho que exista um corpo propriamente sensual nos trabalhos, mas talvez uma presença discretamente irritante ou irritantemente discreta. Como a pimenta-do-reino (em “Attachment”, Iaspis - International Artist's Studio Program in Sweden, Estocolmo, 2000, e “Still-life Calendar”, Stephen Friedman Gallery, Londres, 2002).

Segundo Roger-Martin Buergel, o curador da Documenta 12, a idéia de vida nua está ligada à “vulnerabilidade do ser” em nossa era. Neste sentido, o de uma superexposição desse ser, podemos pensar na imagem da “pele em carne viva” ligada à obra “Carta Faminta”?
Rivane: Quando voltei de Londres (Royal Collage of Art, 1996-98) fui morar em uma casa, em Belo Horizonte. Tinha muita lesma no quintal e resolvi cercar aquela baba luminosa por um tempo, colocando as lesmas em uma caixa de madeira. Deixei um papel lá dentro, da caixa, esquecido e sem muito propósito. Viajei para mais uma exposição. Era uma época de muita viagem, muito entusiasmo por uma certa descoberta do mundo e uma solidão cheia.
Cheia de gente, lugares novos, informações e língua estrangeira. A minha casa não tinha tempo de ter importância. Quando voltei, as lesmas tinham comido o papel, transformando-o em uma espécie de cartografia. Eu tinha fome do mundo e achei que podia me saciar saindo por aí, sem ter muita responsabilidade em relação à própria baba. E, quando cheguei em casa, dei de cara com as lesmas, que dentro de sua casa dada, redefiniram o mundo, e ainda mais: fizeram-no com a boca.

Pensando particularmente em obras como “Love Lettering” e “Word/World”, que espécie de relações você vê, sempre pela via do seu trabalho, entre o mundo do homem, estruturado pela linguagem, e o mundo animal?
Rivane: Tem uma frase que li um dia e que nunca mais encontrei e então acho que é de Camus, que diz: “O acaso é a única divindade da razão”. Acho que foi por acaso que encontrei esta frase… E desde então ela vem martelando na minha cabeça. Já matei o tempo matando formiga como o nosso “herói” (a artista se refere claramente à Macunaíma) para refletir sobre a morte e de como nós a experimentamos como tal. Então eu falo: “Você, formiga, chegou a sua hora”. E pimba! Isto para tentar entender o momento em que subitamente o fluxo de vida é interrompido, numa espécie de chance arbitrária.
Isto para tentar entender o que seria a noção de morte para a formiga e o distúrbio causado pelo seu desaparecimento. Isto para me lembrar do curso, justamente, natural da vida.
Nestes dois filmes que você menciona, as palavras carregadas pelos animais parecem evidenciar uma contraposição entre homem e natureza, mas não vejo as coisas assim. A estranheza e a absurdidade de uma palavra no coditiano dos animais talvez nos deixe apenas atentos para as diferentes estruturas de organização de tudo que é vivo.
Voltando à frase citada acima, o que me fascina em fazer trabalhos com formigas, peixes ou lesmas é o mesmo que procuro em todos os outros trabalhos, que é um certo embate ou colaboração entre acaso e controle. Afinal, são os peixes que acabam por “escrever” uma carta de amor, com o movimento de seus corpos, a expressividade do olhar e a indiferença em relação à nossa linguagem, para além do cruzamento das palavras que carregam no rabo.
Recentemente voltamos, eu e Cao Guimarães, a filmar formigas. Desta vez as formigas levam para a casa confetes coloridos, muitos deles. Uma abstração do ponto final, por assim dizer. O filme chama-se “Quarta-Feira de Cinzas/Epilogue” e é isto, como se ao final do Carnaval, a formiga, alheia, atenta, sobrevivente ou faminta, recolhesse os restos da folia, na metáfora do confete. Mas quem sabe sobre a matinê dentro do formigueiro, do delírio da rainha-mãe ou da evolução das saúvas-foliãs?

O que você espera da inserção de sua obra no contexto curatorial desta 27ª Bienal? Poderia adiantar como seu trabalho vai se configurar no catálogo?
Rivane: Fui convidada para fazer um projeto especial para o catálogo da Bienal. Fiz então uma série fotográfica entitulada “Canteiros/Conversations and Constructions”, assim mesmo, bilíngüe. São construções feitas com comida e que remetem à arquitetura e canteiros de obra. Assim temos por exemplo um ovo em um prato, que faz alusão direta à Brasília, ou um muro feito de pão-de-forma picadinho com mostarda dentro.
Normalmente são ingredientes ou objetos de mesa que tem relação entre si, tipo palito-salaminho, para “ilustrar” questões arquitetônicas e urbanísticas que nos são caras nos dias de hoje, seja o modernismo, a favela ou a calçada de pedra-portuguesa. A comida funciona de maneira direta e evidentemente também metafórica. A mesa de comida é lugar de convívio por excelência. Talvez não tenha mais a mesa. Nem a comida. Os muros estão por aí. E quisera fossem de pão-de-forma ou marmelada, como nos contos-de-fada.

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