sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Coisas de Manoel de Barros

Coisas de Manoel, para Manoel, para mim ou para você.

"Mas a gente não é apenas aspecto. Não somos uma coisa com ninguém dentro. Nossa essência precisa de ser exercida. E a gente exerce a essência  como quando cria a solidão, como quando abre o amor. Se através da linguagem de nossa poesia a gente conseguir se expor, o mundo se refletirá (...)."

"Somos  diferentes. Eu mexo com palavras. O outro é fazendeiro de gado. Enquanto o cidadão mantém a casa em ordem, o poeta cultiva irresponsabilidades. Eu sou rascunho de um sonho. Ele é pessoa da terra. Eu tenho um entardecer de angústias. E o outro vai pro bar se esquecer. Recebo no meu olho beijamento de águas. Me sinto um ralo de sabedoria. E o outro zomba de mim."

"De re pente uma palavra me reconhece, me chama, me oferece. Eu babo nela. Me alimento. Começo a sentir que todos aqueles apontamentos têm a ver comigo."

"Sou puxado por ventos e palavras."

"Uma folha me planeja."

 "Nas profundezas da matéria desenham-se sorrisos imprecisos, germinam conflitos, engrossam formas apenas esboçadas. Toda matéria ondula de possibilidades infinitas, que a perpassam com arrepios insípidos. Esperando pelo sopro vivificante do espírito, ela transborda de si sem parar."

"Não tenho certeza mesmo quase nunca do que faço. Porque o faço com o corpo. E a sensibilidade é traideira. Às vezes tapa a visão. Eu sou demais coalescente às coisas. Não dá para tomar distância de julgador. Os versos vêm de escuros. Eu só tenho meus versos e a incerteza."

"Poeta não tem compromisso com a verdade, senão que talvez com a verossimilhança."

Encontros: Manoel de Barros.
Organização de Adalberto Müller
Apresentação de Egberto Gismonti

Editora Beco do Azougue.
Rio de Janeiro

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Sou a favor de uma arte - Claes Oldenburg


"Sou a favor de uma arte que seja mítico-erótico-política, que vá além de sentar o seu traseiro num museu.

Sou a favor de uma arte que evolua sem saber que é arte, uma arte que tenha a chance de começar do zero.

Sou a favor de uma arte que se misture com a sujeira cotidiana e ainda saia por cima.

Sou a favor de uma arte que imite o humano, que seja cômica, se for necessário, ou violenta, ou o que for necessário.

Sou a favor de uma arte que tome suas formas das linhas da própria vida, que gire e se estenda e acumule e cuspa e goteje, e seja densa e tosca e franca e doce e estúpida como a própria vida.

Sou a favor de um artista que desapareça e ressurja de boné branco pintando anúncios ou corredores.

Sou a favor da arte que sai da chaminé como pêlos negros e esvoaça ao vento.

Sou a favor da arte que cai da carteira do velho quando ele é atingido por um pára-lama.

Sou a favor da arte que cai da boca do cãozinho, despencando cinco andares do telhado.

Sou a favor da arte que o garoto lambe, depois de rasgar a embalagem.

Sou a favor de uma arte que sacuda como o joelho de todo mundo quando o ônibus cai num buraco.

Sou a favor da arte tragável como os cigarros e fedorenta como sapatos.

Sou a favor da arte que drapeja, como as bandeiras, ou assoa narizes, como os lenços.

Sou a favor da arte que se veste e tira, como as calças, que se enche de furos, como as meias, que é comida, como um pedaço de torta, ou descartada, com total desdém, como merda.

Sou a favor da arte coberta de ataduras, sou a favor da arte que manca e rola e corre e pula.

Sou a favor da arte enlatada ou trazida pela maré.

Sou a favor da arte que se enrosca e grunhe como os lutadores. 

Sou a favor da arte que solta pêlo.

Sou a favor da arte que você senta em cima. Sou a favor da arte que você usa para cutucar o nariz, da arte em que você tropeça.

Sou a favor da arte vinda de um bolso, dos profundos canais do ouvido, do fio da navalha, dos cantos da boca, da arte enfiada nos olhos ou usada nos pulsos.

Sou a favor da arte sob as saias, e a arte de esmagar baratas.

Sou a favor da arte da conversa entre a calçada e a bengala de metal do cego.

Sou a favor da arte que cresce num vaso, que desce do céu à noite, como um raio, e se esconde nas nuvens e retumba. 

Sou a favor da arte que se liga e desliga com um botão. 

Sou a favor da arte que se desdobra como um mapa; que se pode abraçar como um namorado ou beijar como um cachorrinho. Que expande e estridula, como um acordeão, que você pode sujar de comida, como uma toalha de mesa velha.

Sou a favor da arte que se usa para martelar, alinhavar, costurar, colar, arquivar.

Sou a favor da arte que diz as horas, ou onde fica essa ou aquela rua.

Sou a favor da arte que ajuda velhinhas a atravessar a rua.

Sou a favor da arte da máquina de lavar. Sou a favor da arte de um cheque do overno. Sou a favor da arte das capas de chuva de guerras passadas.

Sou a favor da arte que sai como vapor dos bueiros no inverno. 

Sou a favor da arte que estilhaça quando se pisa numa poça congelada. 

Sou a favor da arte dos vermes dentro da maça. 

Sou a favor da arte do suor que surge entre pernas cruzadas.

Sou a favor da arte dos cabelinhos da nuca e dos chás tradicionais, da arte entre os dentes de garfos dos bares, da arte do cheiro de água fervendo.

Sou a favor da arte de velejar aos domingos e da arte das bombas de gasolina vermelhas e brancas.

Sou a favor da arte de colunas azuis brilhantes e anúncios luminosos de biscoito.

Sou a favor da arte de rebocos e esmaltes baratos. Sou a favor da arte do mármore gasto e da ardósia britada. Sou a favor da arte das pedrinhas espalhadas e da areia deslizante. Sou a favor da arte dos resíduos de hulha e do carvão negro. Sou a favor da arte das aves mortas.

Sou a favor da arte das marcas no asfalto e das manchas na parede. Sou a favor da arte dos vidros quebrados e dos metais batidos e curvados, da arte dos objetos derrubados propositalmente.

Sou a favor da arte de pancadas e joelhos arranhados e traquinagens. 

Sou a favor da arte dos cheiros das crianças. 

Sou a favor da arte dos murmúrios das mães.

Sou a favor da arte do burburinho de bares, de palitar os dentes, tomar cerveja, salpicar ovos, de insultar. 

Sou a favor da arte de cair dos bancos de botecos.

Sou a favor da arte  de roupas íntimas e táxis. 

Sou a favor da arte das casquinhas de sorvete derrubadas no asfalto. Sou a favor da arte majestosa dos dejetos caninos, elevando-se como catedrais.

Sou a favor da arte que pisca, iluminando a noite. 

Sou a favor da arte caindo, borrifando, pulando, sacudindo, acendendo e apagando.

Sou a favor da arte  de pneus de caminhão imensos e olhos roxos.

Sou a favor da arte Kool, arte 7-Up, arte Pepsi, arte Sunshine, Arte 39 centavos, arte 15 centavos, arte Vatronol, arte descongestionante, Arte Plástico, Arte Mentol, Arte L&M, Arte Laxante, Arte Grampo, Arte Heaven Hill, Arte Farmácia, , Arte Sana-Med, Arte Rx, Arte 9,99, Arte Agora, Arte Nova, Arte Como, Arte Queima de estoque, Arte Última Chance, apenas arte, arte diamante, arte do amanhã, arte Franks, arte Ducks, arte hamburgão.

Sou a favor da arte do pão molhado de chuva. 

Sou a favor da arte da dança dos ratos nos forros.

Sou a favor da arte de moscas andando em peras brilhantes sob a luz elétrica. 

Sou a favor da arte de cebolas tenras e talos verdes firmes. 

Sou a favor da arte do estalido das nozes com o vai-e-vem das baratas. 

Sou a favor da arte triste e marrom das maçãs apodrecendo.

Sou a favor da arte  dos miados e alaridos dos gatos e da arte de seus olhos luzentes e melancólicos.

Sou a favor da arte branca das geladeiras e do abrir e fechar vigoroso de suas portas.

Sou a favor da arte  do mofo e da ferrugem. Sou a favor da arte dos corações, lúgubres ou apaixonados, cheios de nougat. 

Sou a favor da arte de ganchos para carne usados e barris rangentes de carne vermelha, branca, azul e amarela.

Sou a favor da arte  de objetos perdidos ou jogados fora na volta da escola. 

Sou a favor da arte de árvores lendárias e vacas voadoras e sons de retângulos e quadrados. 

Sou a favor da arte de lápis e grafites de ponta macia de aquarelas e bastões de tinta a óleo, da arte dos limpadores de pára-brisas, da arte de um dedo na janela fria, no pó de aço ou nas bolhas das laterais da banheira.

Sou a favor da arte  dos ursinhos de pelúcia e pistolas e coelhos decapitados, guarda-chuvas explodidos, camas violadas, cadeiras com as pernas quebradas, árvores em chamas, tocos de bombinhas, ossos de galinha, ossos de pombo e caixas com gente dormindo dentro.

Sou a favor da arte de flores fúnebres levemente murchas, coelhos ensangüentados pendurados e galinhas amarelas enrugadas, baixos e pandeiros, e vitrolas de vinil.

Sou a favor da arte  das caixas abandonadas, enfaixadas como faraós. 

Sou a favor da arte de caixas-d'água e nuvens velozes e sombras tremulantes.

Sou a favor da arte inspecionada pelo Governo dos Estados Unidos, arte tipo A, arte preço regular, arte ponto de colheita, arte extra luxo, arte pronta para consumir, arte o melhor por menos, arte pronta para cozinhar, arte higienizada, arte gaste menos, arte coma melhor, arte presunto, arte porco, arte frango, arte tomate, arte banana, arte maçã, arte peru, arte bolo, arte biscoito.

acrescente:
Sou a favor da arte que seja penteada, que pensa de cada orelha, seja posta nos lábios e sob os olhos, depilada das pernas, escovada dos dentes, que seja presa nas coxas, enfiada nos pés.

quadrado que se torna amorfo."




Ana Teixeira - Recanto para os desejos todos

 
Essa ação foi feita em São Paulo e em Buenos Aires em novembro de 2001, e as instalações nos espaços expositivos aconteceram simultaneamente nas duas cidades, como o nome de “Recanto para os desejos todos” e “Rincón para los deseos” .
A princípio uma barraca, como a usada pelos camelôs, foi montada no meio deles com a proposta de trocar maçãs por desejos.
Os transeuntes, abordados pela artista, foram convidados a escrever seu desejo em folhas de vinil adesivo transparente.
Com essas folhas foram forradas as paredes das galerias do SESC Santo Amaro e do Centro Cultural Recoleta, previamente pintadas de vermelho.
Nesses espaços maçãs frescas ficaram à disposição do público que, em troca delas, escrevia nas paredes seus desejos.
A ação nas ruas foi filmada e o filme apresentado continuamente durante o período da exposição.








Uma maçã por um desejo.
Uma troca justa?
O simbólico pelo subjetivo. O concreto pelo abstrato. O alimento pelo apetite.
Dê-me um desejo e eu lhe dou uma maçã.
Dou-lhe um momento para pensar em seus desejos.
A Bruxa Malvada? Eva? Lilith?
Ao interferir no cotidiano penso uma arte que extrapola os espaços privilegiados e próprios.
É na rua que o trabalho acontece primeiro para depois inserir-se no espaço expositivo, onde a troca prossegue e as paredes tornam-se abrigo para registros pessoais. Nelas estarão frases e palavras que habitam comumente a esfera do privado, do particular, do íntimo. Não da artista, mas de pessoas comuns, de transeuntes e de visitantes do espaço institucional, que é também público e impessoal.
A galeria configura-se como uma dimensão espaço-temporal de corpos, mentes e vontades.
Suas paredes são vermelhas e abrigam os desejos todos, promovendo reflexões e elaborações diversas; a construção de saberes e sensações, a possibilidade de encontros com o outro e, conseqüentemente, consigo próprio.

Ana Teixeira - Troco Sonhos

Essa ação foi executada em diversas cidades do Brasil de 1998 a 2006.
Foca-se na ambigüidade da palavra "sonho", que, na língua portuguesa tem mais de dez diferentes acepções.
Acontece com a montagem de uma barraca, como as dos camelôs, em um espaço público de passagem e grande movimento, onde está uma bandeja com dezenas de sonhos, pequenos bolos recheados.
É proposto aos transeuntes que troquem sonhos com a artista: em troca de um sonho - bolo doce - eles lhe dão um sonho seu, gravado por um cinegrafista que a acompanha.
Foram mais de 6.000 sonhos trocados e gravados.
Foi feita uma edição desse material, em um filme de 10 minutos de duração.
Este filme, registro da ação, foi exibido:
- na Galeria Vermelho em São Paulo, em 2006, na mostra "Situ/ação - aspectos do documentário contemporâneo", com curadoria de Paula Alzugaray.
- no Espace Paul Ricard, em Paris, em 2005, na mostra "Au delá du Copan". com curadoria de Martin Grossmann.
 







Ana Teixeira - Tausch/Troca

Essa ação foi realizada em Dortmund, na Alemanha, em agosto de 2004, durante a residência da artista no workshop "Heimatwechsel (Change of Home)".
Em três dias diferentes a artista montou uma mesa dobrável em três diferentes mercados públicos, ao lado de outros vendedores. Na mesa estava escrito, em alemão: Tausche ein Wort mit Anderen (Troque uma palavra com alguém). Ela usava uma camiseta onde se podia ler, também em alemão: Ich tausch Wörter auf portugiesish gegen Wörter auf deutsch. (Troco palavras em português por palavras em alemão).
Sobre a mesa havia cartões em branco e canetas. Ela esperava até que alguém se dispusesse a trocar uma palavra com ela, escrevendo-a, então, em um dos cartões. Procurava compreender a palavra e fazia a tradução para o português, escrevendo-a em outro cartão. O transeunte levava para si a palavra em português, deixando com a artista a palavra em alemão.





Ana Teixeira - Escuto histórias de amor

Ação realizada entre os anos de 2005 e 2010 em nove países: Alemanha, Itália, Espanha, França, Chile, Canadá, Brasil, Portugal e Dinamarca.
Em lugares públicos de cada cidade (o centro de São Paulo, o Jardin des Touleries em Paris, La Rambla em Barcelona...) a artista sentou-se tendo ao seu lado um cartaz que anunciava no idioma local "Escuto histórias de amor".
Enquanto tricotava uma lã vermelha, esperava por pessoas que quisessem lhe contar uma história.
Uma câmera, ao longe, registrou a ação.
A reação das pessoas foi variada e em alguns lugares ninguém falou com ela.
Em outros, ela escutou diversas histórias diferentes.
As ações foram registradas em mídia digital e uma vídeo-instalação com os filmes de seis países foi exibida em Toronto, no Canadá, em junho de 2008, no Mercer Union, Centre for Contemporary Art.
Os filmes não têm som e a vídeo instalação conta com um som único, editado com vozes em diferentes línguas e outros ruídos cotidianos dos espaços públicos.
As histórias de amor não podem ser ouvidas. Ficam guardadas no barulho das ruas e na trama do tricô vermelho.









Ana Teixeira - Outra Identidade


Essa ação foi realizada de duas maneiras diferentes.  Em 2003, no Viaduto do Chá e na Avenida Paulista, em São Paulo, numa banca como a dos camelôs, a artista propunha aos transeuntes a aquisição de uma “Outra Identidade”: Cédulas de identificação como as habitualmente usadas no Brasil, sem nome, número ou foto e com frases. 
Um homem-sanduíche caminhava ao lado apregoando: “TROQUE SUA IDENTIDADE”.
Em troca de uma outra identidade o transeunte deixava para a artista uma foto de sua nuca e sua impressão digital, com as quais foram confeccionadas novas cédulas, expostas na Galeria Vermelho em São Paulo, durante a exposição Vizinhos, em 2004.
A partir de 2005 um carrinho passou a ser usado no lugar da banca.
Foram também utilizados carimbos com as frases, com a intenção de ampliar a escolha das pessoas.
Nessa configuração o transeunte deixa sua digital tanto na cédula que ele leva consigo, quanto em um caderno de capa dura, um arquivo da artista, onde também é registrada a frase escolhida.
Entre 2003 e 2010 foram distribuídas mais de 800 "Outras Identidades".
Ana Teixeira



A intervenção urbana de Ana Teixeira ecoa uma preocupação que ronda outra Ana (Miranda): “pretender melhoramentos materiais antes dos morais e intelectuais é querer que os efeitos precedam as causas". Outra Identidade é uma obra intelectualmente sofisticada e a artista é firme na certeza de poder oferecê-la a quem convive com absoluta carência material. Pode-se escolher entre nove modelos de carteira de identidade. No lugar do nome, uma frase. Em troca, deixar-se fotografar de costas, e imprimir sua digital num cartão que fica com a artista. Fica com ela também a pergunta de muitos participantes: qual a finalidade disso?
Amo e não basta.
Um aspecto importante das intervenções de Ana Teixeira é um absoluto respeito pelo participador, interesse por seus desejos (Recanto para desejos adormecidos), suas histórias de amor (Escuto Histórias de Amor e Vende-se Amor: R$0,10), por seus sonhos (Troco Sonhos).  Em Outra Identidade, as maçãs e os petiscos não estão mais presentes, sugerindo que a sedução dessas obras não é material e sim filosófic a. 
 
Agora tanto faz. 
A palavra ARTE não sai fácil da boca da artista. Para a polícia, Ana explica que, apesar da barraca de camelô - que serve de suporte para a almofada de tinta usada na impressão das digitais, papel para limpar o dedo e uma caixa com as réplicas de carteiras de identidade - não está vendendo nada, apenas trocando a identidade das pessoas que passam pelo Viaduto do Chá ou pela Av. Paulista. Para os participantes incomodados com a inutilidade legal do novo documento, ela observa que na VIDA nem tudo precisa servir para alguma coisa.    
 
Não tenho certezas.
Engana-se quem considera a obra inacessível para os transeuntes do centro de São Paulo. A obra ilustra uma idéia que Ana preza: o discurso da indiferença. Não segmentar, não classificar, não dividir em tribos ou em guetos. Não respeitar a diferença, mas, privilegiando a indiferença, oferecer a todos o mesmo tratamento e as mesmas idéias. As fotos  3 x 4, das nucas e não dos rostos, neutralizam símbolos de diferença.
 
Eu me deixo contaminar pela tristeza. Queria menos de mim às vezes.
As frases precisam ser lidas em voz alta pois parte dos participantes não lê. A ingenuidade de tantos - que perguntam se podem usar aquele documento para outras coisas - chega a doer. A firmeza da artista em não ceder a explicações simplistas parece, a princípio, cruel.
 
 
Tenho sonhos.
Mas é colocar em prática a idéia de igualdade. 
 
Não sei de nada nem de mim.
E o trabalho propõe outra questão de identidade: diante da tragédia social brasileira, qual o papel do artista? 
 
Sou uma parte inevitável de mim.
Na onda de internacionalização da arte, são raras as obras que mostram o que deveria ser óbvio: o artista brasileiro não pode escapar da realidade que dorme na calçada da galeria. 
 
Ainda tenho tempo.
A discussão da identidade da arte em face às condições sociais brasileiras já foi levada às ruas por frases mais combativas: Incorporo a revolta. Da adversidade vivemos. Temos fome.  Ana acorda a questão com frases suaves, confiando na necessidade de arte na vida do transeunte que, cúmplice, deixa na obra uma impressão digital.

Paula Braga, agosto/2003.











ARTE CONTEMPORÂNEA
São Paulo, segunda-feira, 04 de julho de 2005

Vendedora achou que obra era golpe

Instalação provoca mal-entendido e artista plástica é detida em SP
LUCIANA PAREJA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Arte contemporânea nem sempre é bem-compreendida. A artista plástica Ana Teixeira, 47, por exemplo, foi parar no 5º DP ontem à tarde, quando fazia uma intervenção pública na feirinha do Bexiga (região central de São Paulo), realizada semanalmente numa praça na rua Treze de Maio.
Na sua bancada móvel, identificada com o nome do trabalho, "Outra Identidade", a artista fazia réplicas de carteiras de identidade, nas quais o "identificado" pode escolher uma entre dez frases, como "ainda tenho tempo" e "não tenho certezas", para ser carimbada no papel, no lugar em que normalmente figura o nome e o número do registro geral.
"A idéia é identificar a pessoa não pelo nome ou por um número, mas por frases que exprimam um pouco do que ela é", diz Teixeira, que já havia realizado a ação outras vezes.
As pessoas levam para casa a "outra identidade" e deixam a impressão digital do polegar gravada em um caderninho, que a artista expõe posteriormente como resultado de seu trabalho. A confusão começou aí.
"Uma senhora que trabalha na feirinha não quis fazer a identidade e começou a dizer que o pessoal era louco de colocar a digital no caderno, que eles não sabiam que uso eu faria daquilo", diz Teixeira. Não é feita identificação do dono da impressão digital no caderno, só há a marca de vários polegares indistintos e a inscrição "Outra Identidade" na capa.
As pessoas, temendo serem vítimas de um golpe, reclamaram no posto da Guarda Civil Municipal instalado na praça, segundo a artista, que foi levada ao 5º Distrito Policial para averiguação.
"Não houve crime, foi só um mal-entendido, é um trabalho de finalidade artística perfeitamente plausível", explica o delegado do 5º DP João Achem Jr. Tanto que Teixeira foi liberada em cerca de 15 minutos.
"O que me impressionou foi a lógica do capital que rege a cabeça das pessoas. Todo mundo ficava me perguntando como eu estava fazendo aquilo sem ganhar nada, sem pedir pagamento. Alguém disse que, se pelo menos eu fosse patrocinada por alguma grande empresa, poderia acreditar em mim, mas como eu não visava nenhum lucro, devia estar com "armação'", afirma Teixeira.

Rivane Neuenschwander

























Entrevista da artista à  Fernando Oliva.
Gostaria de começar perguntando como você vê as trocas que se dão com o público em alguns de seus trabalhos, caso especial de “Eu Desejo o Seu Desejo”. Poderíamos dizer que elas se dão em uma via de mão dupla: de modo simbólico, intermediadas pelo processo artístico (em muitos casos no espaço da instituição, galeria ou museu), mas também de maneira efetiva? Em outras palavras, como em seu trabalho funciona a idéia de “participação”, um conceito chave para a Documenta, a 27ª Bienal e ainda uma preocupação central para o mundo da arte hoje?

Rivane Neuenschwander: Acho que a troca, no sentido de “uma coisa por outra”, se dá em alguns trabalhos específicos, como em “Ici Là-Bás Aqui Acolá”, onde compro desenhos da Torre Eiffel por R$ 1, ou “Imprópria Paisagem”, onde faço um acordo com os amigos em troca de pinturas de marinhas. São trocas a meu ver tanto simbólicas quanto efetivas, e no segundo caso também afetivas.
No caso de “Eu Desejo o Seu Desejo”, lembro-me de ler uma crítica sobre a exposição em um jornal (“Folha de S. Paulo”), em que se dizia que as pessoas trocavam seus desejos por desejos do outro, na base do 1x1, como em um jogo. Não pensei o trabalho nessa direção, e acho que uma leitura ou atitude deste tipo se deve a fatores culturais e também pessoais. Não estamos acostumados a dar ou receber nada de graça. Para mim, tanto faz deixar um desejo escrito por um outro impresso quanto pegar 50 fitinhas sem deixar nada em troca. Não há regras de procedimento de minha parte.
Curioso é que a fitinha parece invocar a troca em um nível mais profundo, pois amarrando-a no braço esperamos que nossos desejos se realizem em troca do desmanche do tecido.
Já a troca no sentido de alteração acontece na maioria dos trabalhos. Me interessa que o “outro” possa interferir no trabalho, seja modificando a sua “aparência” regularmente ou agregando a ele camadas de interpretação e significado. Digo “outro” porque pode ser tanto uma pessoa como também uma formiga ou o vento.
O tempo, invariavelmente, é protagonista constante. Procuro pensar a tão clamada “participação” em vários níveis, como por exemplo em “Andando em Círculos” ( obra feita com bacias de alumínio, água, sabão de coco e cola) ou mais recentemente em “Estórias Secundárias” ([em cartaz na galeria Tanya Bonakdar, em Nova York), onde o visitante contribui com o trabalho sem necessariamente se dar conta disto.

Neste sentido, que tipo de relações você acharia possível estabelecer entre as questões próprias da sua produção e o conceito da “estética relacional”, tal como o concebeu Nicolas Bourriaud?
Rivane: Não me atreveria a fazer relações do meu trabalho com os escritos do Bourriaud. Engraçado é que normalmente os críticos partem do movimento neoconcreto no Brasil para traçar paralelos com o que fazemos por aqui. Como se nossa investigação não tivesse muita conversa com artistas contemporâneos de outras nacionalidades. Talvez por isto a ausência, por exemplo, de uma Lygia Clark para falar de estética relacional.

Para além da relação artista-público, como você vê a troca público-público em seus trabalhos?
Rivane: Quando recebi os papéis datilografados de volta da Bienal de Veneza, referentes à obra “[...]”, fiquei muito impressionada com a generosidade do público, tanto no sentido de colaboração com o projeto quanto no de envolvimento pessoal. Fiz uma seleção de 150 “desenhos” que foram feitos pelas pessoas que passaram pela Bienal e que realmente despenderam tempo para escrever longas cartas, fazer elaborados desenhos ou deixar textos construídos sem letras. Colocando um desenho do lado do outro, vi a riqueza do diálogo público-público e de uma certa eficiência do trabalho neste sentido da comunicação.
Interessante ver o contraponto do indivíduo com o coletivo e como os desenhos se repetem de maneira inconsciente, tanto pelo tipo de mensagens quanto pelo aspecto formal, dadas as limitações técnicas do trabalho (“Estórias de um Outro Dia”, Tanya Bonakdar Gallery, 2006).
Outro trabalho que trata disso de maneira bastante evidente é “Zé Carioca e Amigos” ([que fez parte da mostra “Tropicália - A Revolution in Brazilian Culture”, no Museu de Arte Contemporânea de Chicago, em 2004), onde o público interage entre si, criando um diálogo múltiplo. Em cima da minha “ação”, uma pessoa interfere na ação de outra, seja no sentido de adição e/ou sobreposição de imagens ou textos desenhados com giz, seja no de subtração dos mesmos, pelo uso do apagador.

Você acha possível criar analogias entre a “presença do corpo (corpus)”, como nos fala Agamben (com base na figura jurídica do habeas corpus, “tenha seu corpo”) e a materialidade do corpo em sua produção? Penso nos muitos trabalhos que exigem a presença física e real do público, inclusive para que as trocas se estabeleçam.
Rivane: Honestamente não sei o que Agamben fala sobre isto e por isso não posso fazer nenhum tipo de analogia. A presença física do público é essencial para que o trabalho passe a existir, mas também tento fazer com que o trabalho seja essencial para que o público se dê conta de sua própria existência. Assim espero que o visitante tenha maior consciência do ato de andar ou de olhar, e do que isto implica em acessar “cantinhos” ou dar importância a “coisinhas”.
Não acho que exista um corpo propriamente sensual nos trabalhos, mas talvez uma presença discretamente irritante ou irritantemente discreta. Como a pimenta-do-reino (em “Attachment”, Iaspis - International Artist's Studio Program in Sweden, Estocolmo, 2000, e “Still-life Calendar”, Stephen Friedman Gallery, Londres, 2002).

Segundo Roger-Martin Buergel, o curador da Documenta 12, a idéia de vida nua está ligada à “vulnerabilidade do ser” em nossa era. Neste sentido, o de uma superexposição desse ser, podemos pensar na imagem da “pele em carne viva” ligada à obra “Carta Faminta”?
Rivane: Quando voltei de Londres (Royal Collage of Art, 1996-98) fui morar em uma casa, em Belo Horizonte. Tinha muita lesma no quintal e resolvi cercar aquela baba luminosa por um tempo, colocando as lesmas em uma caixa de madeira. Deixei um papel lá dentro, da caixa, esquecido e sem muito propósito. Viajei para mais uma exposição. Era uma época de muita viagem, muito entusiasmo por uma certa descoberta do mundo e uma solidão cheia.
Cheia de gente, lugares novos, informações e língua estrangeira. A minha casa não tinha tempo de ter importância. Quando voltei, as lesmas tinham comido o papel, transformando-o em uma espécie de cartografia. Eu tinha fome do mundo e achei que podia me saciar saindo por aí, sem ter muita responsabilidade em relação à própria baba. E, quando cheguei em casa, dei de cara com as lesmas, que dentro de sua casa dada, redefiniram o mundo, e ainda mais: fizeram-no com a boca.

Pensando particularmente em obras como “Love Lettering” e “Word/World”, que espécie de relações você vê, sempre pela via do seu trabalho, entre o mundo do homem, estruturado pela linguagem, e o mundo animal?
Rivane: Tem uma frase que li um dia e que nunca mais encontrei e então acho que é de Camus, que diz: “O acaso é a única divindade da razão”. Acho que foi por acaso que encontrei esta frase… E desde então ela vem martelando na minha cabeça. Já matei o tempo matando formiga como o nosso “herói” (a artista se refere claramente à Macunaíma) para refletir sobre a morte e de como nós a experimentamos como tal. Então eu falo: “Você, formiga, chegou a sua hora”. E pimba! Isto para tentar entender o momento em que subitamente o fluxo de vida é interrompido, numa espécie de chance arbitrária.
Isto para tentar entender o que seria a noção de morte para a formiga e o distúrbio causado pelo seu desaparecimento. Isto para me lembrar do curso, justamente, natural da vida.
Nestes dois filmes que você menciona, as palavras carregadas pelos animais parecem evidenciar uma contraposição entre homem e natureza, mas não vejo as coisas assim. A estranheza e a absurdidade de uma palavra no coditiano dos animais talvez nos deixe apenas atentos para as diferentes estruturas de organização de tudo que é vivo.
Voltando à frase citada acima, o que me fascina em fazer trabalhos com formigas, peixes ou lesmas é o mesmo que procuro em todos os outros trabalhos, que é um certo embate ou colaboração entre acaso e controle. Afinal, são os peixes que acabam por “escrever” uma carta de amor, com o movimento de seus corpos, a expressividade do olhar e a indiferença em relação à nossa linguagem, para além do cruzamento das palavras que carregam no rabo.
Recentemente voltamos, eu e Cao Guimarães, a filmar formigas. Desta vez as formigas levam para a casa confetes coloridos, muitos deles. Uma abstração do ponto final, por assim dizer. O filme chama-se “Quarta-Feira de Cinzas/Epilogue” e é isto, como se ao final do Carnaval, a formiga, alheia, atenta, sobrevivente ou faminta, recolhesse os restos da folia, na metáfora do confete. Mas quem sabe sobre a matinê dentro do formigueiro, do delírio da rainha-mãe ou da evolução das saúvas-foliãs?

O que você espera da inserção de sua obra no contexto curatorial desta 27ª Bienal? Poderia adiantar como seu trabalho vai se configurar no catálogo?
Rivane: Fui convidada para fazer um projeto especial para o catálogo da Bienal. Fiz então uma série fotográfica entitulada “Canteiros/Conversations and Constructions”, assim mesmo, bilíngüe. São construções feitas com comida e que remetem à arquitetura e canteiros de obra. Assim temos por exemplo um ovo em um prato, que faz alusão direta à Brasília, ou um muro feito de pão-de-forma picadinho com mostarda dentro.
Normalmente são ingredientes ou objetos de mesa que tem relação entre si, tipo palito-salaminho, para “ilustrar” questões arquitetônicas e urbanísticas que nos são caras nos dias de hoje, seja o modernismo, a favela ou a calçada de pedra-portuguesa. A comida funciona de maneira direta e evidentemente também metafórica. A mesa de comida é lugar de convívio por excelência. Talvez não tenha mais a mesa. Nem a comida. Os muros estão por aí. E quisera fossem de pão-de-forma ou marmelada, como nos contos-de-fada.